"Viver sem fumar é como escrever sem pontuação. Pelo menos, para mim. A pequena cerimónia de acender um cigarro marca um "tempo": o princípio do dia, o princípio do trabalho, cada intervalo ou cada distracção, o alívio (ou o prazer) de acabar qualquer coisa, o almoço (quando almoço), o jantar (quando janto), o fim do dia, antes de fechar a luz, como um ponto parágrafo. O cigarro divide, acentua, encoraja, consola. Abre e fecha. É uma estação e uma recapitulação. "Já cheguei aqui. Falta ainda isto, isto e aquilo". Nas poucas vezes que tentei não fumar, tinha um sentimento de desordem, de arbitrariedade, de não saber passar de uma frase a outra ou de um capítulo ao capítulo seguinte. Os fumadores, se repararem bem, não fumam ao acaso; fumam com ritmo.
O cigarro também é uma companhia. Sobretudo para quem trabalha sozinho. A maior parte das pessoas vai falando, pouco ou muito, durante o trabalho. Por necessidade ou por gozo próprio. Do "serviço" à intriga, há milhares de oportunidades para o grande e simpático exercício de conhecer o próximo: para gostar dele ou para o detestar, para o observar, o comentar ou o intrigar. De porta fechada, à frente de um computador ou de um livro, não há nada à volta. Aí o cigarro ajuda. É um fiel amigo: a pausa que torna o resto tolerável. E que, além disso, recompensa uma boa ideia ou manifesta o entusiasmo ou a execração pelo que se leu. Com quem se pode conversar senão com o cigarro? De certa maneira, o cigarro substitui a humanidade; e não me obriguem a fazer analogias. Mas, principalmente, fumar serve para pensar. Quando, a ler ou a escrever, paro a meio de uma página, porque me perdi num argumento ou não consigo imaginar como se continua, pego num cigarro e penso. Não me levanto, não me agito, não abro a boca, não me distraio. Fumo e procuro com paciência a asneira. O cigarro concentra e acalma. Restabelece, por assim dizer, a normalidade.
E este efeito "normalizador" é com certeza uma das suas maiores virtudes. Não comecei a fumar para ser adulto ou "viril". Comecei a fumar porque sou horrorosamente tímido e porque o cigarro é com certeza a maior defesa dos tímidos. Primeiro, porque ocupa as mãos e simula um arzinho de à-vontade. E, segundo, porque esconde e protege ou cria a ilusão de que esconde e protege. Por detrás de um cigarro, o mundo parece mais seguro. Mesmo se andam por aí a garantir que não."
Vasco Pulido Valente, in Público - 28.06.2007
Encontrei este texto num perfil da página Hi5!!! Deixei-o aqui porque fiquei deliciada com estas palavras... Pela forma bela que este senhor retrata um acto simples que para muitos é um prazer e para outros uma tortura! Ai oh pá!
Encontrei este texto num perfil da página Hi5!!! Deixei-o aqui porque fiquei deliciada com estas palavras... Pela forma bela que este senhor retrata um acto simples que para muitos é um prazer e para outros uma tortura! Ai oh pá!
2 comentários:
Huum, adorei! Principalmente a parte dos tímidos, concordo plenamente!
Cara, adorei esse texto.. A identificação, ahdishda
tentei certa madrugada falar sobre, mas esse texto aí putz..
http://aideiavaga.blogspot.com.br/2012/05/tres-da-madrugada.html
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